EU TENHO UM CALENDÁRIO DE PAPEL PREGADO NA PAREDE. FICA DE FRENTE PARA MIM, NA ALTURA DOS OLHOS, ACIMA DA MINHA ESCRIVANINHA DE TRABALHO.
É grande o suficiente para que eu escreva a lápis, dentro do quadradinho de cada dia, um lembrete qualquer: pagar boleto tal, viagem a São Paulo, ir ao médico, almoçar com os filhos, jogo do Inter, e assim por diante. Minha natureza caótica precisa da referência de um calendário diante dos olhos. É como se eu encaixasse o tempo disponível em cada quadradinho e a desordem do mundo se rendesse a um mínimo de disciplina. Às vezes anoto também o já vivido: “30 de maio, um bem-te-vi pousou no parapeito da minha janela”. E o calendário vira também passado, memória, tesouro humano que nos permite tangenciar o que é impalpável por definição. Ninguém consegue agarrar o tempo.
Norbert Elias, o famoso sociólogo alemão, tem um livro fascinante chamado Sobre o Tempo, em que ele trata da controvérsia em torno da natureza subjetiva ou objetiva do tempo. Os físicos tentam medi-lo, servindo-se de fórmulas matemáticas, “mas o tempo não se deixa ver, tocar, ouvir, saborear nem respirar como um odor”. Para Elias, não se trata de um dado objetivo, como queria Isaac Newton, que era sobretudo um físico. Mas, acrescenta, também não parece ser uma estrutura a priori do espírito, como pretendia seu compatriota, o filósofo Imannuel Kant. Elias entende o tempo como uma convenção, um símbolo construído socialmente para comparar, por via indireta, algo que não pode ser diretamente cotejado.
Em interessante artigo sobre a obra de Norbert Elias, o professor Eugênio Rezende de Carvalho recupera o debate milenar da filosofia sobre o tempo: Aristóteles é do time da perspectiva física e cosmológica, definindo o tempo como “movimento”. Santo Agostinho opõe-se à escola aristotélica, buscando um enfoque psicológico, trazendo o tempo para a esfera da alma. Eu, que sou um ignorante em filosofia clássica, só sei que esses três primeiros parágrafos passaram voando, o que me angustia tremendamente: como aproveitar melhor o tempo?
Essa grande questão existencial, não apenas para cada um de nós, como indivíduos, mas para todos, como nação, tem nos atormentado desde sempre. Em 16 de setembro de 1967, Clarisse Lispector publicou, no Caderno B do Jornal do Brasil, um daqueles geniais textos fragmentados que rompiam a tradição da crônica corrida. Sob o título Daqui a 25 anos, Clarisse escreveu: “Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a 25 anos”. Mais adiante, ela responde: “se não sei prever, posso pelo menos desejar. Posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome.” E argumenta: “Tal é a miséria, que se justificaria ser decretado estado de prontidão, como diante de calamidade pública. Só que é pior: a fome é nossa endemia, já está fazendo parte orgânica do corpo e da alma”.
Passaram-se não 25, mas quase 55 anos desde que Clarisse escreveu a crônica. Não só não resolvemos o problema da fome nesse espaço de duas gerações, como as famílias ricas de duas gerações atrás estão ainda mais ricas hoje. O que me faz lembrar a definição de tempo de um outro grande brasileiro, o crítico literário Antônio Cândido. Ele contestava ferozmente a ideia atribuída a Benjamin Franklin de que “tempo é dinheiro”. Para Antônio Cândido, “tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da nossa vida. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais perto da morte. Portanto eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence aos meus afetos. É para amar a mulher que eu escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo.” Pensemos no tempo que jogamos fora esses anos todos. Como indivíduos. Como nação. Quero gastar meu tempo amando uns olhos de mar. E quero viver num país em que todos possam amar assim. A injustiça não nos rouba apenas o amor, a desigualdade não nos rouba apenas o almoço. O que nos roubam é o tempo, o tecido das nossas vidas.
Por: Marcelo Canelas