Há pouco mais de duas décadas, a televisão na casa do gerente administrativo Flávio Moreira e da professora
de história Isaura Mastella Moreira, em Cruz Alta, não tinha folga. De canal em canal, uma das duas filhas do
casal ia “caçando” os programas esportivos, para saber tudo sobre os jogos e os atletas, em especial os que
se dedicavam ao futebol. Foi em um desses jogos, no dia 29 de junho de 2003, que Maíra Mastella Moreira,
naquela época com apenas 10 anos, viu algo que nunca mais saiu da sua memória: a árbitra Silvia Regina de
Oliveira, ao lado das assistentes Ana Paula Oliveira e Aline Lambert. O chamado trio de ferro entrava
para a história do futebol brasileiro ao compor a primeira equipe de arbitragem totalmente feminina no
Brasileirão. Aquela não era uma novidade só no país, mas em todo o mundo. Demorou quase 14 anos até que outra mulher, Edina Alves, apitasse a Série A após Silvia se aposentar dos gramados. E foram necessários 19 anos até que Maíra pudesse assistir a outra cena que jamais irá esquecer: na Copa do Mundo do Catar, a Fifa convocou três árbitras e três auxiliares pela primeira vez para a
Copa masculina, entre elas a brasileira Neuza Back. A diferença é que, dessa vez, a jovem nascida em Cruz
Alta não era mais só uma fã de futebol, mas uma das grandes revelações da arbitragem brasileira. Por sinal, 2022 foi justamente o ano em que Maíra atuou como árbitra assistente na final do gauchão masculino, em uma partida entre Ypiranga e Grêmio, e entrou para
a história do Rio Grande do Sul como a primeira mulher árbitra a atuar em uma final de Gauchão. Hoje, ela é a primeira mulher da cidade e uma das poucas do Rio Grande do Sul a ter conquistado um escudo da Fifa, o que a credencia para ser arbitra assistente
internacional. A história da arbitragem feminina no Brasil nunca foi fácil, a luta de Maíra foi igualmente árdua. Desde
que conheceu exemplos como o do trio de ferro e o da brasileira Léa Campos, reconhecida pela Fifa como a primeira árbitra do mundo, a educadora física formada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) passou a acreditar, com muita convicção, que, quando o assunto é futebol, as mulheres podem mais do que apenas sonhar.


– Eu tinha 20 anos quando comecei na arbitragem, não tinha
nenhuma outra mulher atuando no interior, pois eu comecei aqui,
em Santa Maria, e só se tinha poucas referências em centros
maiores. Em março de 2014, estreei na divisão de acesso, não
tinha nenhuma referência de mulheres na arbitragem no interior,
mas apostaram em mim, já estreei na divisão de acesso, eu
só pensava que, se o universo permitiu estar ali, eu tinha
condições. Mas foi tudo foi muito difícil, desde conseguir viajar
toda semana, durante seis meses, para Porto Alegre para fazer
o curso de arbitragem, ao mesmo tempo em que terminava a
faculdade, até conseguir começar a conquistar o meu espaço
em campo, primeiro no amador de Santa Maria, depois na
Federação Gaúcha de Futebol, depois na CBF e, agora, também
na Fifa. Amadureci muito ao longo desses anos, e o futebol
também mudou muito. Quando comecei, diziam, por exemplo,
que uma mulher jamais poderia apitar uma Copa do Mundo
masculina, hoje, já posso sonhar e, quem sabe, realizar isso –
afirma Maíra.


A Educadora Física, que, além da arbitragem, dedicase
à assessoria esportiva, gosta da vida sempre em
movimento. No dia a dia, acorda cedo, por volta das
6h, para dar aulas na sua assessoria esportiva e dar
conta de uma rotina que inclui aprendizado de inglês
e espanhol, acompanhamento de médicos esportivos,
massagens semanais, estudo sobre os jogos, apoio
psicólogo esportivo e, claro, os treinos, muitos treinos,
para estar apta para trabalhar nos jogos em que
atua. Isso tudo quando não está viajando pelo país,
para trabalhar como árbitra assistente nos diferentes
campeonatos.
– É uma rotina bem intensa, mas que vale muito a pena. Estar
na Fifa é um sonho pelo qual venho batalhando há muito tempo.
Era, dentre as minhas questões profissionais, um grande objetivo.
Agora, começa outra caminhada, mas eu precisava chegar nisso
para dar os próximos passos. Faço uma análise, inclusive da
idade, por isso que eu sonhava com a FIFA agora, porque eu
via ser possível realizar isso com a idade que tenho hoje, 31
anos. Lutei por esse escudo porque eu queria grandes jogos,
grandes competições, e agora, tendo esse escudo, eu vou, então,
trabalhar intensamente na parte física, e em todas mais que eu
puder, para estar habilitada para essas competições maiores.
Agora posso sonhar com uma Sul-Americana masculina, uma
Libertadores masculina ou um Mundial feminino, o que eu
acredito que, com a idade que eu tenho, com potencial e com
muita dedicação dá para buscar – orgulha-se.
Apesar de toda a dedicação para conseguir o escudo,
Maíra conta que, quando recebeu a notícia de que tinha
alcançado seu grande objetivo, por meio de um contato
telefônico do também novo árbitro da Fifa Rafael Klein,
no início de janeiro, não conseguiu conter a emoção:
– Quando eu vi aquilo, ali, no celular, foi algo muito especial. Eu
vi que era real, que tinha acontecido, porque podia não acontecer.
Pensei: “meu Deus! Aconteceu mesmo. Brilhou. Tô na
Fifa!”.


CARTÃO VERMELHO PARA O PRECONCEITO

Desde pequena, Maíra aprendeu a gostar de esportes: basquete, skate, tênis e, é claro, futebol. Em Cruz Alta,
tinha destaque nos times da escola onde estudava e era sempre uma das primeiras a ser escolhida para
os times, antes mesmo que a maioria dos meninos. Depois, destacou-se tanto nas escolinhas de futebol,
jogando em times femininos, que chegou a pensar em ser uma atleta profissional. Quando percebeu que não
tinha tudo o que era necessário para ser uma jogadora desse porte, conduziu sua vida para a Educação Física,
e não se arrepende das escolhas.
– Eu sempre fui apaixonada por esportes, e o futebol foi o primeiro
deles. Assistia às notícias, via os jogos, estava sempre vendo
todos os programas possíveis. Muito disso vinha da influência
do meu pai, que, assim como eu, também jogou de maneira
amadora. Ele jogava em um time de futebol amador de Pejuçara,
tinha aquelas roupas de atleta, e aquilo me chamava muito a
atenção. Ele tinha meião, e eu adorava pegar e usar aqueles
meiões. Em casa, passava o dia tentando fazer embaixadinhas,
e essas coisas que são bem de quem está começando. A gente
tinha um pátio e, sempre que eu podia, ficava lá jogando –
lembra

Maíra acredita que o apoio dos pais e da irmã, Flávia, para que tivesse a liberdade de praticar o esporte que quisesse, sem qualquer preconceito, foram fundamentais.
– Os meus pais sempre me apoiaram, sempre tive essa
liberdade, nunca teve uma imposição de parar de jogar bola,
muito pelo contrário, o meu pai adorava que eu jogasse. Por ele,
eu seria jogadora. Eu lembro só que um vizinho me perguntou
uma vez, isso quando eu era bem pequena, se meus pais não
me proibiam de jogar bola. Naquela época, eu nem entendi a
pergunta dele, porque meus pais me apoiavam a fazer o que eu
gostasse. Só muitos anos depois eu fui entender que aquilo era
um preconceito. Não vivi o preconceito na minha família, nem
entre amigos ou na escola. Todo mundo sempre me respeitou –
afirma.
Se, dentro de casa e nas suas redes de amigos, Maíra
nunca sofreu preconceito, em outros espaços nem
sempre foi assim. Em alguns jogos e também na
internet, algumas vezes, os comentários julgam sua
atuação por ser uma árbitra.
– Eu procuro não me apegar muito nessa questão do preconceito,
porque sempre consegui meu espaço, tenho trabalhado muito
para isso. O que a gente sente é que, por sermos poucas, marca
mais, todo mundo sabe teu nome e se torna mais conhecida.
Se a gente erra, aquele erro é atrelado não ao jogo, mas ao
nosso nome e ao fato de ser mulher. Então, batalho muito para
que isso não aconteça. E, assim como existem críticas, existe
muito incentivo... estou vivendo uma fase muito especial nesse
sentido. Além disso, diariamente trabalho em contextos onde os
homens predominam, e isso é desafiador, mas quero deixar um
legado e abrir cada vez mais espaço e oportunidades. Busco
a minha ascensão, mas também abrir portas para que outras
mulheres busquem esse caminho da arbitragem, quero fazer por
outras meninas o que outras árbitras fizeram por mim: inspirar
e mostrar que é possível.
Conversar com Maíra é perceber como ela não cuida
apenas de seu corpo, mas também da mente. Lê muitos
livros sobre filosofia e busca todas as formas possíveis
de se aperfeiçoar em seu trabalho. Nesse caminho,
além de ser bacharel em Educação Física pela UFSM,
é especialista em Fisiologia do Exercício: Prescrição
do Exercício pela Estácio de Sá e em Hormonização,
nutrição e treinamento feminino pela Uniguaçu.


No esporte, primeiro eu queria ser jogadora. Cheguei a pensar em ser atleta mesmo. Até meu pai falava que ia me levar para fazer seletivas se eu quisesse, mas, com o passar do tempo, comecei a perceber que, por mais que, na escola, eu tivesse me dado bem, isso não chegaria a um nível profissional, daí eu mudei, me voltei para a Educação Física, cheguei a pensar em fazer Nutrição, Contabilidade, Direito, mas, além do futebol, eu já jogava basquete, tênis, andava de skate, estava
sempre envolvida com movimento, a minha mãe conversou comigo e me ajudou a ver que a Educação Física tinha muito
mais a ver comigo. E foi uma decisão que precisei tomar cedo, porque com 17 anos já estava estudando na UFSM, mas
graças a Deus acertei, sou bem feliz com a área e tudo mais que tenho conquistado por meio dela


INÍCIO DE PARTIDA

Apesar de carregar na memória o trio de arbitragem feminina dos anos 2000, até sua entrada na UFSM, Maíra nunca tinha pensado em ser árbitra.
– Descobri a arbitragem durante a graduação. Apesar de ter entrado
nova no curso, eu já era bem madura, e uma das disciplinas a que tínhamos
acesso era o futebol, que já era algo que eu tinha interesse, e
comecei a me envolver: entrei para o Laboratório de Análise dos Cenários
Esportivos na Mídia. Lá era preciso escrever um artigo. Foi aí que tive a
ideia de pesquisar sobre o trio de árbitras que tinha chamado a minha
atenção na infância. Depois, acabei fazendo meu TCC sobre esse tema
também. Foi essa curiosidade que me levou a fazer o curso da Federação
Gaúcha de Futebol – conta.
Maíra foi aprovada no curso e passou a atuar profissionalmente
em março de 2014, o que faz de 2024 um ano especial, por
marcar a sua primeira década como árbitra. O escudo da Fifa
foi um presente e tanto para marcar a data.


– Naquela época, passei nos cursos da Federação Gaúcha, mas,
quando olhava, não tinha outras mulheres do interior em atuação.
Na verdade, até no estado e no país eram poucas as mulheres na
arbitragem. Então, fiquei pensando: será que vão me escalar? E
achava que não, porque ainda não tinha muito a oferecer, porque
praticamente só o que eu tinha feito era aquela pesquisa com as
mulheres na faculdade. Mas eu segui me qualificando, batalhando
e procurando fazer a minha parte e, para a minha surpresa,
apostaram em mim. Minha estreia foi num jogo profissional da
segunda divisão do estado, ou seja, já na divisão de acesso. Até
os colegas se espantaram com como tinham largado uma guria,
ainda nova, porque eu tinha 20 anos, já na divisão de acesso.
Foi uma grande responsabilidade, mas deu certo – comemora.
A escalada rumo à elite da arbitragem nacional exigiu
dedicação e paciência.
– Quando fui indicada para o quadro nacional, começou outra
jornada. Até ali tinha sido tudo muito rápido, mas, quando cheguei
no nacional, as coisas foram mais lentas e precisei aprender a
lidar com isso, amadureci muito. Em 2019, fiz muitos jogos pela
CBF e foi um ano bacana, fiz uma estreia na série B do Brasileiro,
então eu tive jogos bons e pensei que, em 2020, as coisas iriam
decolar, mas não foi assim, estava tudo meio estagnado, mas eu
não desistia. Fui treinando muito, tentando me destacar, tentando
que me enxergassem, até que, em 2022, eu consegui estrear na
série A, e aí deslanchou nacionalmente. Em 2023, entrei no grupo
de Elite, esse é um marco na minha trajetória.
Muitos jogos estão presentes nas melhores lembranças
de Maíra. Ela faz questão de destacar como o
campeonato amador de Santa Maria ajudou para que
ganhasse experiência de campo. A estreia na série A,
com Avaí e Fluminense, em 2022, e a estreia no Maracanã,
como árbitra auxiliar, no jogo entre Fluminense
e Botafogo, são experiências que não esquece.
– Além de estar estreando no Maracanã, o que que por si só é um
sonho para qualquer árbitro, estava fazendo o clássico carioca, o
que me emocionou muito desde que vi a escalação. Num momento,
resolvi olhar para a torcida, e tinha um cara com uma placa com o
meu nome, dizendo que era meu fã... aquilo me marcou bastante!
Mas nem só de lembranças felizes se compõe o álbum de
recordações da árbitra.
– Eu tive um episódio em 2021 que foi um aprendizado, uma situação
que a TV colocou como erro, né? E aí, depois, eu recebi como
acerto, mas a TV já tinha colocado como erro aquilo, inclusive
até hoje, para aquela equipe, ficou um erro... e eu tinha o meu
Instagram aberto na época, recebi muitos insultos – lamenta.


LIGADA EM CADA LANCE

Além dos campeonatos, 2024 também reserva outro desafio para Maíra. No ano passado, ela já esteve no Paraguai, em um curso para jovens talentos, e, este ano, retornará para um novo treinamento.


– Ano passado, participei de um curso internacional que também me
aproximou desse objetivo da FIFA. Era algo que eu almejava muito,
que é o curso de jovens talentos da Conmebol. Quando fui selecionada,
fiquei muito feliz, porque somos só cinco árbitros indicados pela
CBF para representar o Brasil, e, lá no Paraguai, a gente se uniu a
representantes de 10 países da América do Sul, num total de 50 árbitros.
Fora de campo, o grande desafio é conciliar toda a rotina
com as viagens a trabalho e, ainda, ter uma qualidade de
vida ao lado da esposa, a dentista Natália Brezolin Zago, 34
anos, e dos cães Look e Luna, os parceiros fiéis da dupla.


Sair de Santa Maria não está nos planos por enquanto.
– O ano de 2023 foi bem cansativo para mim em relação às viagens
aéreas, foi bem desafiador. Mas a ideia no momento é me adaptar por
aqui, talvez seja preciso, como no ano passado, reduzir um pouco a
minha agenda de atendimentos. Não abro mão da assessoria, porque
alguns alunos estão comigo desde que me formei, são mais que alunos,
são amigos, e é algo que me faz feliz também. Mas a gente vai
moldando as coisas conforme a necessidade e também para termos
qualidade de vida. A Natália é dentista do Exército e está abrindo a clínica
dela no Vitta, então também está numa fase de conquistas - e é
ótimo celebrarmos isso juntas. Ela é praiana como eu, gosta muito de
treinar também. E é muito bom chegar de volta a Santa Maria e saber
que ela está me esperando com muito do que faz a vida ser especial.
Apesar de todas as conquistas, Maíra é bastante exigente e
quer melhorar e chegar cada vez mais longe.
– Sempre tem o que melhorar, o futebol moderno nos exige muita
técnica, por isso, eu corro atrás de tudo que pode ajudar nesse caminho.
No final de 2019 para 2020, eu fiz em uma folha todo um mapa
geral de tudo que eu queria melhorar para chegar onde eu queria. Isso
foi muito importante. Botei uma data para chegar na Fifa, e pensei
quanto tempo eu tinha para ir atingindo, passo a passo, o que era
preciso para isso. Isso envolve aulas de inglês e de espanhol, preparações
físicas, porque eu conseguia atingir os índices masculinos
desde 2017, mas eu queria mais, aí eu comecei a buscar os índices
internacionais masculinos, depois comecei aulas técnicas de corrida,
para tentar refinar mais isso, para chamar atenção nos detalhes. Agora
que conquistei o escudo, não vou descuidar de tudo isso. Há muito
para sonhar e para realizar pela frente – conclui Maíra.