No mês em que Santa Maria completa 165 anos, a Persona é alguém que tem uma história que lembra a de muitos que escolheram a cidade para viver. Juan Amoretti, 76 anos, veio para cá muito jovem, logo após formar-se em Belas Artes no Peru. Foi abraçado pela cidade, na qual constituiu sua vida, desenvolveu as profissões de artista e de professor e construiu a família da qual tanto se orgulha. Prestes a completar meio século nessas terras, nos mostrou que não é só de tintas e de telas que vive seu ateliê, em sua residência, na rua Serafim Valandro, onde aconteceu nossa entrevista. Por lá, também habitam muitas memórias.

A assinatura de Amoretti não está só em obras expostas em museos ou em galerias públicas e privadas da cidade. Muito pelo contrário, ao longo dos anos, Santa Maria, de certa forma, tornou-se seu museu a céu aberto. As obras, tanto pinturas quanto esculturas, estão no campus da UFSM, na avenida Nossa Senhora das Dores, em frente a hospitais e em clubes. E com a fala calma de quem se acostumou com as dificuldades do idioma, o artista peruano, com um coração genuinamente santamariense, conta que nem pensa em parar, afinal, sua alma de artista é justamente o que alimenta sua vida.

Caminhar pelo ateliê de Amoretti é uma experiência única. Nesse espaço, estão obras em andamento, telas que retratam, principalmente, pessoas que querem seus rostos ou os de familiares e amigos eternizados pelas mãos do artista. Na sala ao lado, as paredes são uma grande galeria de tudo o que já criou. E foi apontando o dedo em cada linha que ele nos contou não apenas a história de cada obra, como também a do homem que deu vida a cada uma delas. Uma série, em especial, tem destaque na casa. “O Idealista” é uma figura muito presente nas obras do artista. Contudo, essa série, em específico, representa a vida dele. São oito quadros, os quais retratam as diferentes fases de sua trajetória. – No primeiro quadro, começo com a pose do pensador, visto que estava pensando o que fazer da minha vida. Depois, ele está construindo asas para poder voar, porque acredito muito nisso, que as pessoas precisam voar em busca dos seus sonhos, como um dia eu voei para Santa Maria. No terceiro quadro, existe uma divisão entre as pessoas que me incentivaram e as que me puxaram para baixo. Depois, vemos que, com aquelas asas que construiu, o idealista voa para a montanha, chega ao cume da Cordilheira dos Andes, o mais perto possível do sol, pronto para ascender ao sol, e, por último, aparece juntando as penas para começar tudo de novo, já que a vida é um ciclo. E revela, emocionado, em frente às obras:




“O Idealista sou eu!”. Sou eu, porque sou
um idealista, e muitas pessoas são. Afinal,
qual artista nunca ouviu: “onde você está,
parece que está voando?”. Ao longo da
minha vida, já fui muito criticado, passei
por muitas dificuldades, mas, graças a
Deus, superei. Agradeço a todas as pessoas
que tiveram paciência comigo, que me
ajudaram a encontrar meu caminho.

Amoretti segue duas escolas principais, a do coração e a do realismo. – Tento pintar aquilo que meu sentimento guardou, aquilo que me ajudou a estar vivo até hoje. Pago ou não pago, procuro que uma obra minha transmita a mesma emoção – explica. E é possível encontrar muito de Amoretti em cada traço de suas pinturas e esculturas. No mural “500 anos da Invasão da América”, no teatro Caixa Preta da UFSM, que acaba de completar 30 anos, é possível ver as tropas espanholas que dizimaram os incas, deixando um rastro de destruição em uma cultura única. E não foi só nos livros de história que ele aprendeu sobre isso, e sim com sua própria família, pois esse assunto era um tema comum, ou seja, a destruição do seu povo. – Essa obra é uma denúncia a respeito de: por que matar a raça humana? Ela é um protesto. O painel é um dos prediletos do artista, o qual não tem receio de apontar as obras de que mais gosta entre suas centenas de trabalhos. Além desse painel, Amoretti tem muito orgulho de outro, “O Corpo Humano”, que está em frente ao Hospital Universitário e é o maior desse tipo na América Latina.


O INICIO DE TUDO

Filho mais velho de uma família de 12 irmãos, Amoretti foi educado com rigidez pelos pais, Yolanda e Juan. Não bastava fazer algo, era preciso dar o exemplo aos irmãos menores. – Meu pai me deu muita responsabilidade. Eu tinha de dar o exemplo aos outros, ser o mais dedicado no trabalho. Nas férias, trabalhava como engraxate, ajudante de pedreiro, office boy, entregador. Ele me dizia que eu tinha de ser o melhor, independentemente do que eu escolhesse fazer. Se eu fosse um pedreiro, deveria ser o melhor pedreiro, se eu fosse um pintor, o melhor pintor. Até hoje, o artista não gosta de acordar cedo. Prefere passar as madrugadas trabalhando no ateliê. São resquícios de uma época em que só conseguia fazer suas obras à noite, uma vez que trabalhava durante todo o dia.



Dediquei-me a ser professor, mas não tive
esse tempo para investir em meu trabalho
como artista. Fui professor por 45 anos e
até hoje encontro alunos que dizem que os
ensinei a desenhar, e isso me deixa muito
feliz porque eu sou muito grato ao Brasil,
que foi um país que me acolheu, recebeume de braços abertos, deu-me um emprego,
foi onde tive meus três filhos, Juan Pablo,
50 anos, Djan Raphael, 46, e Ana Maria,
39, os quais também são dedicados a serem
boas pessoas. Então, sinto-me realizado
não só com o meu trabalho, mas com o de
muitos que, para mim, foram como filhos.
Além disso, sempre tive muita gratidão em
troca. Eu sempre dizia que um dia eles me
agradeceriam. Hoje, sinto-me grato em
vê-los dando aulas, expondo suas obras,
sendo atuantes.



Querendo descobrir alguns segredos da nossa Persona, perguntamos a Amoretti o que ele gosta de fazer quando não está trabalhando. A resposta veio rápida, tal como uma pincelada em uma tela: – Pintar! Por mais que goste de viajar, de conhecer lugares, de ouvir música e de passar o tempo com os quatro netos, Juan, Matias, Davi e Alice, é a arte o que o faz mais feliz. – Minha mãe era idosa, e eu ia para o Peru todos os anos. Então, meus colegas perguntavam se eu conhecia determinado museu ou obras como a Monalisa, e eu só conhecia dos livros, porque, quando viajava, era só para o Peru. Por causa disso, eu me sentia menor do que eles. Um dia, resolvi mudar isso. Fui para a Europa duas vezes, conheci muitos museus, muitas obras, santuários, a Capela Sistina, o Vaticano. Aquilo mudou os horizontes – conta sobre suas viagens.




A HISTÓRIA DE AMOR QUE COMEÇOU POR CORRESPONDÊNCIA

E dizer que essa relação toda de amor com Santa Maria começou com um anúncio de jornal. A primeira esposa dele, Maria Lúcia Matos, morava na cidade e mandou publicar, no jornal lá do Peru, um anúncio procurando um rapaz para se corresponder. – Eu me achava feio, nunca tinha namorado. Resolvi tentar, e ela me selecionou em meio a três mil cartas. Fomos trocando correspondências, só nos conhecíamos por fotos 3X4 quando, um ano depois, eu a pedi em casamento. Casamo-nos e passamos a morar no Peru. Eu tinha dois empregos: trabalhava como restaurador em um estúdio particular e no Instituto de Teleducação. Porém, mesmo assim, os gastos que nós tínhamos eram muito elevados. Mesmo um telefonema, naquela época, era muito caro. Havia também as viagens para o Brasil. Ela vinha bastante, porque tinha a família aqui. Então, eu pensei que daquele jeito nunca construiríamos nada, porque não sobrava dinheiro, mesmo trabalhando tanto. Desse modo, decidimos nos mudar para o Brasil. Com Lúcia, além dos filhos Pablo e Rafael, Amoretti construiu o início de uma vida na cidade. Passou a trabalhar na Revista Rainha, ilustrando, principalmente, as capas da revista. Depois, surgiu a oportunidade de lecionar Desenho na UFSM. Ainda, fez amizade com Edmundo Cardoso e outras figuras influentes da cena cultural da cidade. A terceira filha, Ana Maria, é de seu casamento com a também artista Regina Maria Rigão. A vida, por aqui, foi de muitas conquistas e também de muitas dificuldades.

A fé de Amoretti não está estampada apenas em suas obras. Ao lado da porta de entrada de seu apartamento, está uma imagem de Nossa Senhora Medianeira, que ele mesmo restaurou. – Não saio, nem entro em casa sem deixar de pedir a bênção dela – revela o artista. Amoretti acredita que um artista se faz com 1% de dom e 99% de muito trabalho e persistência. Em sua família, a inclinação para as artes veio de um avô, o qual era marceneiro, e da mãe, que era costureira. Entretanto, foi na escola que ele começou a desenhar, primeiro, para copiar os textos apresentados em aula e distribuir aos colegas, tentando fazer amigos, já que, por se achar feio, era muito introspectivo

– Eu era muito desatento, a sala dava para um pátio. Então, eu contava quantas vezes um pássaro levava gravetos para o ninho. Muitas vezes, o professor notava essa minha desatenção e me fazia alguma pergunta. Nesses momentos, meus colegas, de brincadeira, sussurravam as respostas erradas. Eu sofria muito do que hoje chamam de bullying e acabava sendo colocado para fora da aula. Eu gostava de prestar atenção em coisas novas, em repetições. Eu acho que isso é algo que acontece com os artistas, isto é, essa vontade de observar. Finalmente, para terminar o curso secundário, escolhia-se entre os cursos mais de exatas e os de humanas. Assim, escolhi os de artes. Coloquei, em uma folha todas as profissões que existiam e, do outro lado, aquelas em que poderia me encaixar. E foi dessa forma que fui fazer a prova na Escola Nacional Autônoma de Belas Artes de Lima, no Peru. A prova era um desenho com carvão e papel jornal, e eu nunca tinha usado aqueles materiais, quase rodei. Mas passei entre os 90 selecionados. O desejo de aprender a desenhar era tanto, que eu passava as noites praticando, até que me formei, com nota máxima em desenho. Desenhista, pintor, escultor, muralista, retratista e restaurador de obras de arte, Juan Amoretti é um homem com uma sensibilidade imensa e com um acervo admirável. Pelos colegas, é considerado um mestre em todas as áreas das artes plásticas nas quais atua. O mais interessante disso tudo é que, ainda que tenha ganhado o mundo com suas obras, uma delas feita para o Papa Francisco, nenhuma outra cidade, nem mesmo sua terra natal, tem tantas, muito menos tão diversa produção do artista, muito menos no espaço público. – Na antiguidade, os gregos colocavam suas melhores obras a céu aberto. Os romanos criaram arcos e outros monumentos para reverenciarem o retorno dos guerreiros à Roma. Até mesmo, na Idade Média, bastava visitar as igrejas para ver as maiores obras de um artista.



Eu não me entrego. Mesmo que uma porta
seja fechada, um dia ela se abrirá. Se fosse
pela opinião de alguns colegas, os murais,
por exemplo, jamais existiriam. De alguns,
porque outros são grandes incentivadores.
No entanto, aprendi que é preciso lutar
com humildade. Sem ela, não se consegue
superar os próprios defeitos. Sou muito
brabo, mas já aprendi que, na vida, é
preciso perdoar e também, sempre que se
cai, recomeçar.


LINHA DO TEMPO