MAIS DO QUE UMA EMPREENDEDORA QUE ENSINA MECÂNICA, UMA MULHER QUE INSPIRA OUTRAS MULHERES A CONQUISTAREM SUA LIBERDADE.

“Ensino mecânica para mulheres fortes”. É assim que Ritieli Pereira, 34 anos, define uma das atividades que lhe dá mais prazer, o projeto “Dona do Meu Carro”. Por mais que quando olhe no retrovisor de um dos veículos, na oficina que administra com o marido, Fabiano Deprá, o que ela enxergue seja uma grande mecânica e conhecedora de peças e automóveis, na verdade, o que se refle ali é uma pessoa com uma história difícil, mas que conseguiu dar a volta por cima e que hoje é capaz de inspirar outras mulheres. Se Ritieli classifica as clientes que aprendem com ela a cuidar dos próprios carros como fortes, o que dizer dessa persona que desde antes do nascimento enfrenta verdadeiras provações?

– Quando eu nasci, em Faxinal do Soturno, minha casa passou por uma visitação. As pessoas não acreditavam que eu fosse “normal”, muitas iam até lá tentar descobrir com qual problema eu tinha nascido, porque a minha mãe, quando estava grávida de mim, foi atropelada e os médicos chegaram a aconselhar a interrupção da gravidez, pois ela precisou tomar remédios. Apesar disso, ela teimou, e eu sobrevivi. Talvez aquele fosse um sinal de que nada na minha vida seria fácil, mas que um dia eu descobriria que estou aqui para usar a mecânica como um instrumento para chegar até outras mulheres e mostrar a elas que elas não precisam de ninguém para controlar o carro, muito menos a vida – afirma Ritieli.

A rotina da família, na Quarta Colônia, não era nada fácil. A moradia dependia das casas emprestadas ao pai de Ritieli, Antonio Martins Gonçalves, em troca de trabalho. Por isso, quando ele conseguiu uma oportunidade como marceneiro, em Três Barras, distrito de Santa Maria, não pensou duas vezes.

– Minha irmã e eu crescemos ajudando os nossos pais. Eles plantavam fumo e tinham um engenho. Então, como não havia filhos homens, quem dava conta disso éramos nós. Desde os 11 anos, aprendemos a dirigir moto, trator, foi uma infância muito difícil, não só por termos de trabalhar, mas, porque, quando bebia, meu pai batia na minha mãe, e aquilo machucava demais a gente – relembra Ritieli.


A VONTADE DE RECONSTRUIR A VIDA

Não demorou para que a filha mais velha de Antonio, já falecido, e de Sara Locateli Pereira, colocasse na cabeça que precisava de um jeito de ir embora de casa. E foi isso o que ela fez assim que arranjou o primeiro namorado, aos 15 anos. – Eu imaginava que a minha mãe nunca sairia de casa, já que ela vivia em um relacionamento abusivo, sendo dependente financeiramente do meu pai. Eu queria estudar, queria crescer na vida. Desde criança, eu brincava que assinava cheques e que era uma empresária importante. Desse modo, sinto-me realizando o sonho daquela menina que queria ser reconhecida pelo seu trabalho – conta. Para sobreviver em Santa Maria, Ritieli e o então namorado começaram a trabalhar e a estudar. 

– Comecei na Bella Motos, quando eles vendiam só peças para bicicletas. Fui conhecendo as peças, comecei a trocá-las. Os clientes nem sempre gostavam de ver uma mulher fazendo esse serviço, mas tiveram de se acostumar comigo. Um dia, meu namorado resolveu terminar e isso aconteceu mais ou menos na mesma época em que a minha mãe veio com a minha irmã, Andrieli, para cá, fugindo daquela vida que levava com o meu pai. Eu me vi com uma família para ajudar a sustentar e precisei de outro trabalho. Então, consegui um emprego na Sundow e comecei a aprender tudo sobre peças para motos. Foi uma época bem complicada, e não é só porque Ritieli não tinha mais do que um par de scarpins pretos para calçar todos os dias para ir para o trabalho. Para se sustentarem, a mãe fazia faxinas e a irmã dela começou a atuar como manicure.

Meu pai foi o melhor marceneiro que eu já conheci. Entretanto, o que realmente aprendi com ele foi que não podia depender de ninguém além de mim mesma para nada, muito menos de um homem. Eu cresci na empresa, consegui um salário melhor. Assim, aos poucos, comecei a conquistar o meu espaço e as minhas próprias coisas.

O retorno com o antigo namorado acabou colocando nos planos a primeira casa própria.

– Vendemos o Monza que a gente tinha e reformamos a casa que estávamos comprando, só que levamos um golpe. Ficamos sem o dinheiro e sem a casa – lamenta.

O NASCIMENTO DO FILHO E O RECOMEÇO PROFISSIONAL

Mas, como não há mal que sempre dure, pouco tempo depois, ela comprou um imóvel, no Residencial Monte Belo, na Cohab Fernando Ferrari. Então, surgiu a ideia, a longo prazo, de ter um filho. O projeto de ser mãe ela tinha resolvido adiar mais um pouco quando recebeu uma ótima oferta de emprego. Só que, pouco após pedir demissão, ela descobriu que estava grávida e acabou não sendo contratada pela nova empresa e ainda teve de enfrentar uma gravidez de risco. Arthur Pereira Bianchi, 12 anos, nasceu de sete meses de gestação e foi, ao mesmo tempo, a realização do sonho de ser mãe, mas um período de muitas provações.

– Tivemos de ficar morando na garagem da casa que a minha mãe alugava até a nossa ficar pronta. Eu tinha engordado muito na gestação e enfrentei um período de depressão. Minha saúde também estava frágil porque tive pneumonia enquanto esperava o Arthur. Estava tudo muito complicado. E foi quando a situação estava mais confusa do que parecia, que a mecânica entrou de vez na vida de Ritieli.

– Primeiro, trabalhei alguns meses na mecânica de um amigo nosso, fazendo serviços mais administrativos. No entanto, meu filho ficou doente e precisei sair. Depois, consegui um emprego na Eletropeças, e foi lá que comecei a construir uma das minhas melhores fases profissionais. Eu comecei como caixa. Mas não aguentava fazer só aquilo. Então, passei a atender o telefone. Depois, comecei a aprender sobre as peças, e todos foram ótimos comigo, ensinaram-me muito. Quando surgiu uma vaga de vendedor, eles acreditaram em mim, pagaram até um curso de mecânica no Senai, e foi nesse curso que me apaixonei por essa área.

Foi aos 24 anos, que Ritieli se tornou gerente da nova loja da Eletropeças e começou a conquistar muitos sonhos, tais como um carro melhor e mais estabilidade financeira. Ainda, realizou cursos técnicos junto a UFSM. – Logo em seguida eu percebi existir um mercado para as peças de carros importados. A demanda por elas era diária, e lá nós não vendíamos. Propus implementarmos isso na loja, porém a empresa preferiu não seguir esse caminho. Então, criei uma fanpage para comercializar esse tipo de peça. Com isso, um colega me denunciou, e os proprietários conversaram comigo para saber se eu preferia seguir lá ou com o meu negócio próprio. Eles mesmos sabiam a minha resposta. A demanda era tanta, que eu tinha colocado a meta de R$ 10 mil em vendas nos dois primeiros meses e já estava vendendo muito mais.

O LADO EMPREENDEDOR

Ritieli montou sua própria loja junto a uma oficina mecânica. Aos poucos, tornou-se administradora da oficina, e o acordo com o proprietário era assumir de vez o estabelecimento em um ano. No entanto, a oficina cresceu, e ele desistiu do negócio. – Quando retirei a minha loja de lá, eu já tinha me separado, e o Fabiano e eu já namorávamos. Porém, a oficina que ele tinha era dele. Então, fui trabalhar lá com carteira assinada, como funcionária. Eu não queria algo que não era meu, ao contrário do que muitas pessoas falaram na época. Atualmente, tenho uma amizade muito grande com a filha dele, a Fabielly, que, para mim, é como uma filha. Mas naquela época, tudo foi muito difícil. Ele tinha se separado há cerca de um ano. Hoje, tenho orgulho de tudo que construímos juntos e de ele ser um grande parceiro, que acreditou e acredita em mim. Isso é muito importante – afirma

Ao ler até aqui, certamente você já pensou: que história difícil! No entanto, há mais uma questão que Ritieli e a família tiveram de enfrentar. Em 2017, ela recebeu uma ligação. O pai dela teve um AVC e tinha ficado entre a vida e a morte. – Foram as 72 horas mais terríveis das nossas vidas, sem saber se ele sobreviveria. Quando ele sobreviveu, a assistente social explicou que eu teria de levá-lo para casa e praticamente montar um hospital lá para ele. Eu fiquei muito revoltada por tudo aquilo que passamos, não conseguia aceitar. O dia que ele faleceu, foi o dia que realmente cuidei dele. Eu tinha acordado tão feliz, levei-o ao pátio, cortei grama, depois nós saímos e ele ainda estava acordado quando eu cheguei em casa. Coloquei-o para dormir e, pela manhã, quando fui dar o remédio para ele, já estava morto. Foram cinco meses com ele acamado, uma época muito dolorosa para todos nós, mas de muita ressignificação – conta. Com uma trajetória de tanta resiliência para compartilhar, não é difícil compreender porque Ritieli se emociona tanto ao dividir seus momentos mais dolorosos. Por outro lado, também não é complicado entender o que desperta seus sorrisos mais sinceros.

Montar o motor de um carro é apaixonante, porque ele é como se fosse o coração de tudo. A parte da injeção eletrônica, que é bem minuciosa, também é algo que gosto muito, porém já não tenho tempo de fazer. Agora, nos cursos, quando as clientes abrem o capô do carro pela primeira vez, é uma coisa que eu não consigo nem expressar em palavras, é o mesmo brilho no olho da minha primeira vez.

A mulher que nas horas vagas adora se aventurar em trilhas, passeios de Jet-Ski e motocicleta, admite que é uma mãe bem exigente, mas apaixonada pelo filho. E mais, ela acredita na mecânica como um caminho para “libertar” muitas outras mulheres. – Aprendi a ser “livre” através da mecânica. De poder ir para vários lugares com meu carro, levando meu filho e sabendo que ele estaria em segurança comigo, porque eu saberia o que fazer caso acontecesse algum problema com o veículo. Até que chegou o momento em que acreditei que deveria compartilhar esse conhecimento para outras pessoas – relembra Ritieli. O que começou como algo entre amigas e clientes, sem pretensão nenhuma, ganhou tanta visibilidade que acabou se transformando no projeto “Dona do Meu Carro”.

– Um dia uma cliente que é professora da UFSM, me disse que eu tinha que montar um curso, que eu poderia chegar a mais mulheres. Ela plantou a sementinha, mas eu não me sentia segura. Achava que as pessoas iam rir do que eu queria fazer. Com a chegada da pandemia, quando se ouviu falar muito sobre a presença digital, eu comecei a fazer vídeos dando dicas básicas de mecânica. A minha história começou a chegar aos poucos para as pessoas que me acompanhavam naquele ambiente, até que um dia recebi um convite para dar aula de mecânica básica para mulheres, em uma escola profissionalizante aqui em Santa Maria. Realizamos a primeira turma com 10 mulheres, pois ainda não podíamos ter aglomerações – conta.

Atualmente, Ritieli orgulha-se de poder trazer liberdade para mais mulheres através do seu conhecimento.

Eu vim para Santa Maria com uma mão na frente e outra atrás, e não aceitei menos do que merecia. Me sinto uma vencedora porque, profissionalmente, já cheguei onde nunca imaginaria. Eu já passei por tanta coisa difícil, que cheguei a me afastar de Deus, hoje, cada vez mais, tenho me aproximado Dele. Eu sou a mecânica que ensina mecânica para mulheres, as pessoas já me conhecem por a “Dona do Meu Carro”. Inspirar essas pessoas a não dependerem de ninguém representa a minha volta por cima, quem faz meus cursos sai com muito mais do que mecânica, leva junto um pouco da minha história de vida e de estímulo para ser mais independente.